Todos os dias, eu acordo bem cedo e pego três ônibus para chegar à faculdade. Acostumei-me com as responsabilidades rapidamente e fui me adequando ao ambiente do meu jeito.
Em um desses dias que a rotina me abraçou, acordei com o barulho do despertador e fui ao banheiro. Meio zonza ainda, liguei o chuveiro e deixei a água percorrer por todo o meu corpo, banhando-me tranquilamente. Quando a poesia realmente fez folia em minha vida, você veio me falar dessa paixão inesperada por outra pessoa. Cantarolei na minha cabeça e quando desliguei o chuveiro, ouvi Caetano cantar pra mim. Mas não tem revolta não, eu só quero que você se encontre... Ué, eu não sabia que tinha essa música no celular. Peguei minha toalha e notei que tinha deixado o celular no quarto, não fazia ideia de onde essa música estava vindo.
Quando saí do banheiro, percorri por toda a casa e finalmente percebi que a música vinha do quintal e do outro lado do muro. Olhei o relógio: dez pras cinco. Eu não sabia que a dona Lordes acordava tão cedo. Arrumei-me, tomei café e fui para a parada de ônibus.
Na faculdade, no meio da aula de ciência política que dois alunos discutiam com o professor com opiniões egoístas, lembrei-me de um detalhe da dona Lordes: ela é surda. Uma viúva pequena de cabelos brancos e curtos e dona de uma simpatia inigualável, ela mora numa casa grande e com um papagaio. Todas as vezes que nos falávamos, tinha que gritar no seu ouvido e isso a fazia rir com o meu mau jeito com o tom das palavras. Ela deve ter deixado o rádio ligado e não percebeu.
Assim que cheguei, vi dona Lordes saindo de casa com sua sacola reciclável e um chapéu florido que a protege do sol. Acelerei o passo e fui falar com ela:
- Oi, dona Lordes, tudo bem com a senhora? - gritei a medida que me aproximava.
- Oi, Nathália! Tá tudo bem sim, tá chegando agora? - ela perguntou sorrindo.
- É, agora. A senhora tá indo fazer a feira? Posso acompanhá-la? Tá faltando umas frutas lá em casa, queria companhia.
- Ah, claro, vamos.
Coloquei o braço dela no meu e adequei os meus passos aos dela, ouvindo-a falar que eu não precisava comprar goiaba, porque a goiabeira dela tava cheia.
Fiz as compras, atentando-me aos conselhos dela do quanto é importante ter uma sacola reciclável para fazer a feira.
Quando estávamos voltando para casa, deixei-a terminar sobre o episódio de um quase assalto e perguntei:
- Dona Lordes, hoje eu tava tomando banho e notei que o rádio da senhora estava ligado. A senhora já desligou?
- O rádio te incomodou? - ela perguntou séria.
- Não senhora - franzi a testa -, eu só pensei que tinha deixado o rádio ligado e não escutou.
- Eu deixo ele ligado todos os dias - ela finalmente disse depois de alguns segundos -, mas ontem eu aumentei um pouco o volume.
- E por quê?
- Bom... - ela respirou fundo enquanto virávamos a esquina -, meu marido ficava horas no quintal com o rádio ligado cantando com o Louro e arrumando a goiabeira, sabe? Depois que ele foi ao hospital e não voltou, o Louro continuava cantando e deixei o rádio ligado para ele e para mim.
- Nossa, dona Lordes, desculpe, eu não sabia...
- O que?
- Eu disse que não sabia, peço perdão - falei mais alto.
- Não se preocupe com isso. - ela disse rindo - Eu aumentei ontem, porque o Louro tá sentindo muito a falta dele esses dias e o rádio parece não tá dando mais conta.
Procurei a chave de casa no meu bolso enquanto ela entrava dentro de casa.
- Às vezes, eu acho que ele ainda está lá no quintal. Na hora de dormir, quando vejo que o outro lado da cama tá vazio, é que me dou conta que ele não tá. Por isso que a goiabeira tá cheia.
Olhei pro chão, não conseguia encará-la.
- Pois dona Lordes, qualquer coisa que precisar, me avise, ok? - fui mais sincera possível.
Ela respondeu com um sorriso e fechou a porta.
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