sábado, 25 de julho de 2015

Vizinha






   Esse ano, voltei a morar na mesma casa que cresci até os nove anos. Aqui, a rua (especificadamente com o nome travessa), abriga vizinhos que fazem parte da família por consideração há mais de quarenta anos. Relembrei da costureira grávida, que hoje tem um garoto de dez anos que vive caindo de bicicleta, e da bodega da esquina, que contratou um segurança que dorme em serviço na calçada. Assustei-me com as mudanças (dois shoppings e dezenas de restaurantes novos) e com a quantidade de gente que lembrou de mim, trazendo abraços fortes, sorrisos largos e sempre um "qualquer coisa que precisar, me avise, ok?".
   Todos os dias, eu acordo bem cedo e pego três ônibus para chegar à faculdade. Acostumei-me com as responsabilidades rapidamente e fui me adequando ao ambiente do meu jeito. 

   Em um desses dias que a rotina me abraçou, acordei com o barulho do despertador e fui ao banheiro. Meio zonza ainda, liguei o chuveiro e deixei a água percorrer por todo o meu corpo, banhando-me tranquilamente. Quando a poesia realmente fez folia em minha vida, você veio me falar dessa paixão inesperada por outra pessoa. Cantarolei na minha cabeça e quando desliguei o chuveiro, ouvi Caetano cantar pra mim. Mas não tem revolta não, eu só quero que você se encontre... Ué, eu não sabia que tinha essa música no celular. Peguei minha toalha e notei que tinha deixado o celular no quarto, não fazia ideia de onde essa música estava vindo. 
   Quando saí do banheiro, percorri por toda a casa e finalmente percebi que a música vinha do quintal e do outro lado do muro. Olhei o relógio: dez pras cinco. Eu não sabia que a dona Lordes acordava tão cedo. Arrumei-me, tomei café e fui para a parada de ônibus. 
   Na faculdade, no meio da aula de ciência política que dois alunos discutiam com o professor com opiniões egoístas, lembrei-me de um detalhe da dona Lordes: ela é surda. Uma viúva pequena de cabelos brancos e curtos e dona de uma simpatia inigualável, ela mora numa casa grande e com um papagaio. Todas as vezes que nos falávamos, tinha que gritar no seu ouvido e isso a fazia rir com o meu mau jeito com o tom das palavras. Ela deve ter deixado o rádio ligado e não percebeu.
   Assim que cheguei, vi dona Lordes saindo de casa com sua sacola reciclável e um chapéu florido que a protege do sol. Acelerei o passo e fui falar com ela:
   - Oi, dona Lordes, tudo bem com a senhora? - gritei a medida que me aproximava. 
   - Oi, Nathália! Tá tudo bem sim, tá chegando agora? - ela perguntou sorrindo. 
   - É, agora. A senhora tá indo fazer a feira? Posso acompanhá-la? Tá faltando umas frutas lá em casa, queria companhia. 
   - Ah, claro, vamos.
   Coloquei o braço dela no meu e adequei os meus passos aos dela, ouvindo-a falar que eu não precisava comprar goiaba, porque a goiabeira dela tava cheia.
   Fiz as compras, atentando-me aos conselhos dela do quanto é importante ter uma sacola reciclável para fazer a feira. 
   Quando estávamos voltando para casa, deixei-a terminar sobre o episódio de um quase assalto e perguntei:
   - Dona Lordes, hoje eu tava tomando banho e notei que o rádio da senhora estava ligado. A senhora já desligou?
   - O rádio te incomodou? - ela perguntou séria.
   - Não senhora - franzi a testa -, eu só pensei que tinha deixado o rádio ligado e não escutou.
   - Eu deixo ele ligado todos os dias - ela finalmente disse depois de alguns segundos -, mas ontem eu aumentei um pouco o volume.
   - E por quê?
   - Bom... - ela respirou fundo enquanto virávamos a esquina -, meu marido ficava horas no quintal com o rádio ligado cantando com o Louro e arrumando a goiabeira, sabe? Depois que ele foi ao hospital e não voltou, o Louro continuava cantando e deixei o rádio ligado para ele e para mim. 
   - Nossa, dona Lordes, desculpe, eu não sabia...
   - O que?
   - Eu disse que não sabia, peço perdão - falei mais alto.
   - Não se preocupe com isso. - ela disse rindo - Eu aumentei ontem, porque o Louro tá sentindo muito a falta dele esses dias e o rádio parece não tá dando mais conta. 
   Procurei a chave de casa no meu bolso enquanto ela entrava dentro de casa.
   - Às vezes, eu acho que ele ainda está lá no quintal. Na hora de dormir, quando vejo que o outro lado da cama tá vazio, é que me dou conta que ele não tá. Por isso que a goiabeira tá cheia.
   Olhei pro chão, não conseguia encará-la. 
   - Pois dona Lordes, qualquer coisa que precisar, me avise, ok? - fui mais sincera possível.
   Ela respondeu com um sorriso e fechou a porta.